segunda-feira, 11 de julho de 2005

Esvaziamento da linguagem é reflexo de menor raciocínio

George Orwell, no livro 1984, falava numa nova linguagem, o new-speak, que o poder totalitário criava para destruir a tradição cultural. Agora, considera o sociólogo, ex-ministro e ex-deputado António Barreto, "temos inúmeros fenómenos de newspeak", com uma linguagem feita de "passwords, palavras-tipo, o santo e a senha, que as pessoas dizem todas já sem pensar, porque são tiques da linguagem sistematicamente reproduzidos por qualquer linha política".

Dois exemplos. "Não há político que se preze que não diga que qualquer coisa que vai fazer é 'um grande desafio' ou 'uma aposta'. Uma pessoa está a dizer que vai decidir criar medidas para promover a agricultura de regadio ou um urbanismo mais decente e declara 'Eu aposto'. Essas coisas não se apostam: elaboram-se, preparam-se, constroem-se e fazem-se. A aposta é exactamente o contrário: é um jogo de azar. E há ainda o desafio. 'Então, porque é que o senhor faz isso?' 'Porque é um desafio.' Normalmente, essa pessoa tem uma ambição ou uma necessidade ou precisa de fazer qualquer coisa."

Agora, sublinha o sociólogo, até se inventam palavras. "No outro dia, um dirigente político importante estava a falar de 'priorização'; um outro já só diz 'disponibilização' em vez de disponível. O número de novas frases que se inventam são típicas de relatórios de burocratas ou de tecnocratas, que eles transferem directamente para o discurso, o que faz com que a retórica parlamentar - que, no século XIX, em Portugal, era fantástica, absolutamente prodigiosa, de qualidade literária -, hoje em dia seja miserável. Raramente há debates que sejam exemplos de retórica parlamentar argumentativa. Os ministros respondem por norma secamente, está-se sempre a dizer que você ou o seu partido há seis anos dizia uma coisa completamente diferente. O que é que o partido não terá dito nos últimos 30 anos? Mil coisas. Há sempre um exemplo no partido para contrariar aquilo que se diz hoje. Isso não é um argumento político, não é um argumento retórico, não é um argumento racional".

Comparando com os parlamento inglês ou francês ou americano, sustenta que nessas assembleias, "em geral, os deputados são mais discursivos, mais argumentadores e muito menos agressivos. Em Portugal, o curioso é que a agressividade está muito pouco no conteúdo do que dizem, mas no tom". Além desse azedume, "as pessoas já levam os discursos feitos para responder - diga o que disser o outro, a resposta já está feita".

António Barreto entende que a actual "democracia de massas, de consumo imediato, proclamatória, de espectáculo, com as sondagens logo no dia seguinte, transformou - no pior sentido da palavra - a linguagem." Simultaneamente, "como a política é cada vez mais visível (televisão, imprensa, escrutino popular), a linguagem está cada vez mais cuidadosa. As pessoas têm medo de reflectir, de pensar em voz alta, de falar à medida que vão pensando. E, portanto, têm tiques e palavras-chave preparados."

E há ainda um outro lado da moeda. "Como o político está a trabalhar para as sondagens, para a opinião pública, para os resultados imediatos, para os noticiários das oito na televisão, reduz o pensamento e a reflexão a frases todas elas cheias de precaução, que é para não correr riscos - e para dizer uma coisa que eventualmente até seja mal compreendida ou que dê para tudo. Isto tem sido terrível!"

Barreto verifica que, "lendo os jornais, nunca se diz que há uma crise; diz-se que já se vê a luz ao fundo do túnel, que amanhã vai ser melhor, que é preciso lutar contra os pessimistas e contra os cépticos, o futuro é que interessa". Isto é, conclui, "um empobrecimento da linguagem. E o empobrecimento da linguagem não é um assunto técnico; é porque há um empobrecimento do pensamento, do raciocínio, da reflexão e da sinceridade."

Agora, "na televisão e no parlamento ouve-se, frequentemente, princípios de frases que não terminam ou onde não há verbo; nunca se sabe quando vem a vírgula, o ponto final, o parágrafo. Ora, falar também é utilizar a pontuação, exige regras para se ser compreendido. Não sou conservador na linguagem; sou conservador é numa língua completa, que traduza um pensamento claro e argumentado." Um renovado newspeak?


Diário de Notícias, 11.07.2005

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